Senna, 30 anos - Capítulo 8: o fatídico acidente era mais grave do que pensava

Lívio Oricchio descreve o GP de San Marino de 1994, desde a largada até a batida na Tamburello, e a angustiante viagem até o Hospital de Bolonha na esperança de que Ayrton sobreviveria

| GLOBOESPORTE.COM / LíVIO ORICCHIO, EM ESPECIAL PARA O GE


30 anos sem Ayrton Senna: uma homenagem ao ídolo em Interlagos
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Chocante: dirigi 40 longos minutos até o hospital de Bolonha a fim de saber se Senna sobreviveria ao acidente.

Olha, amigo, automobilismo é um esporte de risco. Mesmo com todas as preocupações relativas à segurança, ainda hoje, sempre é possível ocorrer uma fatalidade, em um treino ou uma corrida.

Você vai entender em breve a minha escolha de iniciar o capítulo falando disso.

A credencial de imprensa distribuída pela FIA traz essa informação, para lembrar que não apenas os pilotos, mas todos que estão no autódromo trabalham em uma área de risco. Quer saber mais? A entidade deixa por escrito, na credencial, que se acontecer algo com você, ela não tem responsabilidade alguma.

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Tragédias em sucessão

Veja esses exemplos de fatalidades não só de pilotos: em 1953, o italiano Giuseppe Farina perdeu o controle da sua Ferrari 500 na 30ª volta do GP da Argentina, em Buenos Aires, e matou nove espectadores. Em Monza, em 1961, o alemão Wolfgang von Trips acabou envolvido em outra tragédia.

Ele estabelecera a pole position com sua Ferrari 156. De repente, antes da curva Parabólica, na primeira volta do GP da Itália, tocado involuntariamente pela Lotus de Jim Clark, a Ferrari tomou a direção da torcida, instalada sobre um barranco que servia de barreira de proteção. Não funcionou. A Ferrari atingiu a área de cima do barranco e em seguida voltou, virada, para a pista.

Von Trips, que podia ser campeão do mundo naquela prova, morreu, assim como outros 13 torcedores. E, nas 24 Horas de Le Mans, de 1955, a Mercedes do francês Pierre Levegh voou na direção das arquibancadas e matou 84 pessoas.

Ímola, agora

A largada do GP de San Marino ainda não fora dada e já havia um morto na história: Roland Ratzenberger, no sábado. Recapitulando: nove em 1953 na Argentina, 14 na Itália em 1961 e 84 em Le Mans, em 1955, dentre tantos outros acidentes graves.

A grande diferença é que meu conhecimento daquelas provas se resumia ao contato com a literatura específica. Em Ímola, 1994, eu vivia as tragédias pessoalmente. E os pilotos, em questão, não eram completos desconhecidos para mim.

Como escrevi no capítulo anterior, Jyrki Jarvilehto não disputara as duas primeiras etapas da temporada por ter se acidentado, com gravidade, na curva Stowe, em Silverstone, na pré-temporada. Ele era o companheiro de Schumacher, com Benetton B194-Ford. No sábado, no fim da tarde, conversei com ele.

Ratzenberger já tinha morrido. “Eu tive muita sorte', disse Jarvilehto. Ele sofreu fratura de duas vértebras cervicais e, por milagre, a lesão óssea não se estendeu até a medula nervosa, que corre por dentro das cervicais. Se isso tivesse ocorrido, estaria provavelmente paralítico, no mínimo.

Confira os últimos capítulos da série Senna, 30 anos:

Capítulo 4: contorcionismo dentro do carro da Williams e altas doses de estresseCapítulo 5: acidente grave de Rubinho causa apreensãoCapítulo 6: morte de Ratzenberger abala AyrtonCapítulo 7: tensão nas horas que antecederam o GP de Ímola

Já na largada, quase mais mortes

O GP de San Marino começa também em grande estilo. 14 horas: Roland Bruynseraede autoriza a largada da corrida. O público é excelente, como de hábito na Itália. Jyrki Jarvilehto, quinto no grid, não larga. O motor Ford da sua Benetton morreu.

Uma parte do pelotão consegue desviar, mas sua posição é muito na frente no grid.

O português Pedro Lamy, com Lotus 107C-Mugen Honda, acerta em cheio a traseira da Benetton, parada na pista. Uma roda da Lotus voa na direção da arquibancada e atinge vários torcedores. Com carros e detritos para todo lado no asfalto, o diretor de prova ordena a entrada do safety car na pista. Senna lidera a corrida, seguido por Schumacher.

Da sala de imprensa, onde eu estava, temia pelas vidas de Lamy, Jarvilehto e das pessoas que receberam o impacto da roda da Lotus. Dá para compreender como todos que estavam no autódromo viam seus temores crescerem a cada instante?

Estávamos sensibilizados com os acidentes da pré-temporada, envolvendo o próprio finlandês e Jean Alesi e naquele fim de semana até então. Problemas graves de segurança se sucediam sem parar.

De novo, conversávamos entre nós, jornalistas, que John Barnard, conceituado projetista, estava com a razão: retiraram a eletrônica embarcada e não reduziram a potência, deixando os carros inguiáveis.

Inadequação total do safety car

Nós esperávamos por outras más notícias. E ela veio mais cedo do que supúnhamos. Os carros passavam na minha frente. Da janela da sala de imprensa à pista não havia mais de 30 metros. O safety car liderava o corso, com Senna em primeiro e Schumacher em segundo. O safety car, naquela época, era um veículo de série, sem maiores preparações.

A velocidade com que percorria o circuito pouco tinha a ver com o mínimo exigido pelos carros de F1 para manter a temperatura dos pneus e dos freios num valor mínimo aceitável para quando a corrida fosse reiniciada.

Hoje, o safety car é um Aston Martin Vantage ou um Mercedes GT Black Series, com motor de 700 cavalos, superpreparado para o que a F1 exige. E sempre conduzido pelo mesmo piloto, o alemão Bernd Maylander, desde o ano 2000, isso mesmo, 24 anos. Isso dá uma boa noção da responsabilidade desse complexo e perigoso procedimento de neutralizar a competição, diante das consequências que pode gerar se o passo a passo não for seguido à risca.

Williams lançava fagulhas pelo assoalho, atrás

No fim da quinta volta do GP de San Marino, o safety car deixou a pista e a corrida foi reiniciada. Vi a traseira da Williams de Senna, ao passar na minha frente, raspando o asfalto com violência poucas vezes vista. Lançava fagulhas pela traseira, muitas, resultantes do contato dos discos de metal existentes na prancha sob o assoalho com o asfalto.

Compreendi que a baixa velocidade do safety car fez com que a pressão dos pneus da Williams caísse perigosamente.

Senna passou por onde me encontrava, pouco depois da linha de chegada, local da sala de imprensa, abrindo a volta como líder depois da saída do safety car, com Schumacher sempre bem próximo.

Perda de trajetória assustadora

Eu o vi passar e, ao sair do meu campo de visão, já no início da Tamburello, voltei-me para o aparelho de TV na minha frente. A imagem que surgiu já mostrou a Williams seguindo reto logo depois de começar a contornar a velocíssima curva, percorrida com o acelerador no curso máximo, em sexta marcha, a pouco menos de 300 km/h. Foi assustador pelo que poderia acontecer na sequência.

Lembro de ter visto a hora no terminal de computador na sala de imprensa. Ele nos repassa uma série de informações: 14 horas e 17 minutos, sexta volta do GP de San Marino, a primeira desde a relargada da prova.

Curiosamente, ao entender que Senna iria colidir no muro, a primeira coisa que me veio à mente foi que aquela seria outra etapa sem marcar pontos. Repare que a noção de um Senna imortal estava incrustada também em mim. Tinha consciência de que ele iria se chocar em alta velocidade, mas em nenhum instante imaginei que pudesse se ferir. Ao menos gravemente.

A imagem seguinte que nos foi oferecida pela TV italiana era já a da Williams desacelerando depois do impacto no muro. Epa, pensei! Bateu forte mesmo. Enquanto o carro ainda se arrastava no cimento branco da reduzida área de escape da Tamburello, eu tentava identificar o estado do cockpit, verificar se o santantônio estava inteiro. Enfim, qualquer dado que me permitisse formar uma ideia da gravidade do ocorrido.

Quando a Williams parou, com Senna inerte dentro, e ele deu aquela pequena mexida na cabeça, imaginei que não se tratava de um acidente fatal. Ao contrário, naqueles segundos tinha a impressão de que Senna teria se ferido sem maior gravidade.

Mas, ao rever o acidente, logo em seguida, pude compreender que o ângulo de impacto da Williams no muro não fora pequeno e a distância percorrida desde o choque até a imobilização sugeria ter havido uma desaceleração violenta, maior perigo nos acidentes. Identifiquei ao mesmo tempo, porém, bons sinais. O cockpit parecia inteiro, bem como o santantônio, barra de proteção, atrás e acima da cabeça do piloto.

A dura verdade emerge

Tudo começou a mudar quando vi o pessoal do regaste estender um lençol branco a fim de impedir a obtenção de mais imagens do atendimento ao piloto. Isso sempre é um indicativo de sérios ferimentos.

O quadro se complicou ainda mais ao ver sangue no chão. Não estava certo se vinha de uma hemorragia ou de traqueostomia, para permitir que Senna respirasse melhor.

Mais: os pés de Senna, deitado no chão, estavam por demais abertos. Se fossem os ponteiros de um relógio, definiriam quase o horário 15 para as 3 horas. Tinha a certeza de que o piloto estava inconsciente.

Nesse instante, saí da sala de imprensa e fui até a saída de boxe, de onde poderia atingir, por fora, cerca de 300 metros adiante, o local do acidente na Tamburello. Mas os comissários haviam bloqueado a passagem. Permaneci lá uns cinco minutos, acompanhando tudo através das imagens de TV instaladas nos boxes da Minardi. Fiquei ali para ver se não me deixavam mesmo passar. Na Itália, nem tudo é “pão, pão, queijo, queijo'.

Mais grave do que pensava

Angelo Orsi, um velho amigo da família de Senna, fotógrafo da revista Autosprint, com quem converso regularmente, voltava do local da batida.

- Ele está mal, muito mal, perdia muito sangue pela cabeça - foram suas primeiras palavras. Levei um susto. Pela primeira vez compreendi que o caso era mais grave do que pensava.

Ao cair em mim, corri para a sala de imprensa a fim de pegar meu computador, a bolsa e me dirigir, de novo, para o Hospital Maggiore de Bolonha, um velho conhecido. Eu já estivera lá na sexta-feira à noite, para visitar o Rubinho. Agora, no domingo, repetiria os cerca de 50 quilômetros que separam o autódromo do hospital. Para algo inacreditável: descobrir se Senna iria sobreviver.

Eu estava revoltado. Depois de tantas desgraças, a próxima era previsível. Não sei se por inocência, comecei a achar que a corrida não deveria ser disputada. Alguma coisa estava errada e, quem sabe, Barnard estivesse certo demais. Já de posse das minhas coisas, caminhei rápido até o estacionamento da imprensa, ao lado da curva Rivazza.

Vocês querem matar mais um?

Na hora em que estava abrindo a porta do meu carro, ouvi o ronco ensurdecedor dos motores dos monopostos de F1 passando por ali, bem próximo de onde estava, ainda atrás do safety car. Seria dada uma nova largada, sem Barrichello, sem Ratzenberger e, agora, sem Senna.

Ainda hoje reflito sobre o meu comportamento naquele instante. Lembro de ter gritado para alguém, sei lá quem, pois estava realmente atingido com a sequência de tragédias: Vocês querem matar mais um?

Mas, apesar do meu protesto, lá no fundo ainda tinha esperanças de chegar no Hospital Maggiore e receber a notícia de que Senna estava sendo operado, seu estado era grave, mas não irreversível.

Pronto, cheguei no Hospital Maggiore

Muito bem, acabo de entrar no hospital Maggiore onde, como escrevi, já havia estado para visitar o Rubinho na sexta-feira.

No próximo capítulo narro a minha reveladora conversa com os médicos que atenderam Senna ainda na maca, na pista, e durante o voo de helicóptero até o hospital. Foi um grande baque para mim!

Logo depois de estacionar o carro e entrar no Hospital Maggiore acessei sem nenhum impedimento o 11º andar, onde estava a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Fui o primeiro, talvez, a chegar.

Mais Senna, 30 anos:

Capítulo 1: chega a eletrônica. E a Williams do brasileiro pioraCapítulo 2: os desafios de pilotar a inigualável Williams de 1994Capítulo 3: talento de Schumacher e malandragem da Benetton pressionam o brasileiro

Saí do elevador e bem próximo, na porta da UTI, havia um médico conversando com um colega. Eu perguntei se sabiam algo de Senna, se ele estava lá. O médico se apresentou, era o doutor Giovanni Gordini. O outro era o doutor Domenico Salcito, os responsáveis por atender Senna na pista e voar com ele no helicóptero até o hospital. Muito profissionais e gentis.

O doutor Gordini descreveu o que se passava. Apesar de profissional, demonstrava estar sentindo muito aquilo tudo. Dentro da UTI, Senna estava sob os cuidados de outros especialistas, como os neurocirurgiões Franco Servadei e o doutor Andreolli.

Ao saber que eu era jornalista e a trabalho de uma mídia brasileira, o jornal O Estado de S.Paulo, o doutor Gordini começou a me contar os detalhes do atendimento a Senna ainda na maca e depois no helicóptero. Por ter formação acadêmica biológica também, eu podia compreender tudo o que me explicava em voz baixa, lentamente.

No próximo capítulo narro tudo em detalhes. Até mais.



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